sábado, abril 16, 2005

manhãs...

Como a criança que com um pau de esfregona com quase o dobro do seu tamanho ameaça lá em cima os deuses que ousam desafiá-la, o mundo que tentam impingir-lhe onde todas as criaturas são maiores que ela própria.
Em movimentos anti-heroicos agita a arma no ar, sentindo-se pequenamente poderosa em cima do palanque de pedra da praça do mercado, a um palmo do céu, mas muito acima dos deuses.
Auguro o seu futuro:
Menino pagão, não queiras ser alguém na vida. Não penses que és, simplesmente existe. Não desistas de existir e de encarar os deuses que te desafiam como iguais, outros tantos ninguéns que por aí andam, como tu ao sabor das memórias.
Às vezes não comas a sopa e vagueia pelo mar nas traseiras da tua casa.
E não tenhas medo do escuro, os brilhos e as luzes enganam, o escuro não, sente-se.
Continuo pelas ruas da cidade cujo céu suplanta qualquer outro céu. É pesado de mais, curva os homens que ousam perpetrá-lo, fazer dele brinquedo de bolso.
É castigo! Quem no seu perfeito juizo quereria um pedaço de céu?
Povo, cabeças de vento, o céu não existe, o chão também não!
Devaneios filosóficos e antropológicos e a brisa fria corta em quatro os meus olhos. volto ao automatismo do percurso das calçadas que conheço de cór, empedrados a perder de vista numa terra pequena que se julga grande.
Empurro a porta (nos Correios), longos minutos de espera no banco vermelho sujo. A tecnologia chegou à cidade, o progresso, o desenvolvimento. tickets de papel, luzes verdes e vermelhas que ordenam os velhos e as velhas jogados nos cantos. que não descolam dos olhos os números anseando o momento cambaleante em que ao balcão voltam a descarnar a miséria que é a vida de quem teve o céu junto dos berlindes, nos bolsos, enquanto fugido à sopa curvava as ondas espessas e frias no areal.
Mulheres envoltas de negro, olhos negros, líquidos, vazios de sonho, cujas mãos parecem maiores que as pernas. Mãos duras, grossas, rudes, ásperas de varrer vigorosamente durante séculos a réstea das alegrias (hei-de encontrar os seus baldes do lixo, tesouros de felicidade).
Palavras amortalhadas num envelope, matei essa parte de mim e ainda paguei metal por isso. Correios igual a crueldade; ao menos deixavam-me uns trocos para um chupa de melancia acalmar a dor que tenho em mim.

1 comentário:

Sara disse...

Tão divino como o pedaço de céu que me pertence... Logo eu, que sou tão ajuizada!